O partido é meu e eu defino como quiser: Hesitação ideológica de elites em contextos pós-autoritários
Por Rafaela Berger Pereira*
O artigo “It’s my party and I’ll lie if I want to: Elite ideological obfuscation in post-authoritarian settings” foi publicado na Revista Party Politics por Cesar Zucco e Timothy J. Power, em 2023. Zucco é PhD em Ciência Política pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e integra o quadro de professores da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Power é professor de Política Latino-americana na Universidade de Oxford e ao longo de sua carreira tem se dedicado a estudos específicos sobre o Brasil.
A proposta do trabalho é examinar as origens e a evolução do que se popularizou no Brasil como o fenômeno da “direita envergonhada”. Trata-se da hesitação de políticos conservadores em assumir que seus posicionamentos estão alinhados com a direita em cenários pós-autoritários. Na prática, esses políticos se definem como centristas, o que os posiciona à esquerda de seus próprios partidos e revela uma espécie de hesitação ideológica em assumir seu real posicionamento.
Um dos argumentos apresentados pelos autores é que a hesitação ideológica pode ser uma estratégia de elites políticas ambiciosas para permanecer no poder em diferentes governos. Dizer fazer parte do centro e não da direita possivelmente facilita a manutenção de cargos ocupados por políticos de direita em governos de esquerda, o que viabiliza a manutenção da influência nos processos decisórios. Na literatura, estudos argumentam que o excesso de polarização pode levar ao colapso de regimes democráticos, o que reforça as motivações de políticos para praticar a moderação como estratégia de governabilidade.
Dados que demonstram como esse fenômeno ocorre são apresentados pelos autores a partir de um survey aplicado a 428 políticos da Assembleia Constituinte do Brasil em 1987, logo após o fim da ditadura militar em 1985. Naquele contexto, nenhum dos 428 representantes se definiu como de direita radical e apenas 6% dos entrevistados disse ser de direita moderada ou de centro-direita. Nas outras categorias, 37% dos políticos disse ser de centro, 52% de centro-esquerda e 5% de esquerda radical. Existem ressalvas sobre esses dados. Afinal, se a ditadura militar de extrema-direita chegou ao fim, é porque a reprovação popular ao regime da época e ao que se compreendia como ideologia partidária de direita era consistente.
Uma das contribuições do artigo que mais se destaca é a proposta do conceito de obfuscation para definir e mensurar o fenômeno da hesitação ideológica. Os autores apresentam um diagrama que sintetiza os níveis de obfuscation, como um comportamento individual ou do partido. Além disso, o diagrama projeta a obfuscation tanto para a direita quanto para a esquerda, apesar de o caso tratado pelo trabalho ser o fenômeno da direita envergonhada.
A análise dos cenários políticos de diferentes países latino-americanos revela que o comportamento de hesitar e moderar a posição ideológica em prol da governabilidade não é exclusivo do Brasil, mas uma prática comum nos países que viveram regimes autoritários. Entre os principais achados, os autores indicam que políticos pessoalmente associados aos regimes autoritários passados, como as ditaduras militares na América Latina, têm maiores chances de fazer parte da direita envergonhada, como se realmente quisessem se desvincular dos feitos passados contrários à democracia.
No entanto, ao longo da última década observamos uma ascensão do conservadorismo de extrema-direita, não apenas na América Latina, mas ao redor do mundo. Foram eleitos: Donald Trump, nos Estados Unidos, Jair Bolsonaro, no Brasil, Javier Milei, na Argentina, Viktor Orbán, na Hungria… E outros mais. A maioria dessas figuras políticas de direita não tinham nada de envergonhadas, pelo contrário, tinham e têm muito orgulho de seus posicionamentos. Seus eleitores também manifestam orgulho de seus votos nas ruas e nas redes sociais. Esse panorama dá indícios de que essa nova ultra-direita esteja rompendo com o fenômeno da direita envergonhada.
Quando observamos o cenário legislativo do Brasil recente, após a derrota de Bolsonaro, verificamos uma certa resistência da extrema-direita bolsonarista, que também não parece envergonhada, mas sim orgulhosa. Mesmo diante da ampla reprovação do governo Bolsonaro nacional e internacionalmente, os deputados e senadores bolsonaristas permanecem alinhados com suas pautas e defendendo sua ideologia. É o caso de Nikolas Ferreira, Carla Zambelli e Damares Alves. Além disso, mesmo com a inelegibilidade do ex-presidente determinada pelo Supremo Tribunal Federal, existe a esperança de que possam superar o presente cenário e eleger Jair outra vez.
O artigo de Zucco e Power é uma contribuição valiosa para os estudos sobre partidos e comportamento político. Para pesquisas futuras sobre este tema, uma possibilidade interessante é investigar se e em que medida a hesitação ideológica de políticos apresenta variações entre governos de esquerda ou direita. Será que políticos de esquerda também arrefecem seus posicionamentos em contextos politicamente dominados por conservadores? Quando comparados diferentes governos ou países, políticos de direita ou de esquerda são mais fiéis às suas ideologias partidárias? O artigo é uma ótima contribuição para o campo e fomenta ideias para estudos sobre conceitos muito atuais, como polarização política e calcificação (Nunes; Traumann, 2023).
Referência principal:
ZUCCO, Cesar; POWER, Timothy J. It’s my party and I’ll lie if I want to: Elite ideological obfuscation in post-authoritarian settings. Party Politics, p. 13540688231209852, 2023.
Referência complementar:
NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do abismo. Harper Collins, Rio de Janeiro, 2023.
* Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Paraná e Bacharel em Ciências Sociais também pela UFPR. Integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Tecnologia (PONTE) e também do Grupo de Pesquisa Comunicação Eleitoral (CEL). Lattes: http://lattes.cnpq.br/0653941130410986 Email: rafaelaberger816@gmail.com
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