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Metáforas na construção retórica dos papéis comercial e editorial no Jornalismo: uma resenha crítica

Por Fabiane A. Lima*

Enquanto instituição social, o jornalismo possui um conjunto de práticas, normas, símbolos e sistemas que formam e são formados na prática, bem como estão em constante negociação e articulação no decorrer dessa prática. Enquanto organização, o muro que separa a redação do comercial ajuda a manter as relações entre os jornalistas enquanto grupo coeso e separado do pessoal de publicidade, com o qual há uma espécie de conflito de interesses. Entretanto, essa afirmação normativa retórica encontra-se muitas vezes em disputa na prática da profissão. No que diz respeito à recente necessidade de mudanças no seu modelo de negócio, as organizações jornalísticas se veem diante da necessidade de renegociar essas normas.

É a busca por desvendar como membros do comercial e do editorial lidam com essas normas que direciona o estudo Rhetorical construction of newspapers’ editorial and advertising relationship (ARTEMAS; VOS; DUFFY, 2016), reportado neste texto. Os autores realizaram 18 entrevistas em profundidade e analisaram a retórica utilizada por esses profissionais em jornais americanos na discussão da metáfora do muro que divide essas relações. A pesquisa buscou saber o que essas metáforas revelam sobre as normas institucionais e como executivos de ambos os setores fazem uso delas.

Para embasar a pesquisa, Artemas, Vos e Duffy (2016) fundamentam-se nas teorias institucional, de campo (BOURDIEU, 2005), organizacional e da retórica. Dentro da teoria institucional, os autores destacam que instituições têm natureza inerentemente discursiva e coordenam a ação social através de suas normas. Ao reproduzir os discursos normativos e as metáforas das instituições, os seus membros reforçam seu pertencimento a ela e sua legitimidade, bem como têm nas suas normas um modo de guiar suas ações.

Na teoria de campo, ressalta-se que as normas e éticas são importantes na definição da autonomia. Destaca-se que, no jornalismo, a tensão entre os meios ocupacionais comercial e cultural é constante e definidora do campo, mas também reflete a precariedade dessa autonomia. Além disso, o muro que divide as atividades comercial e editorial do jornalismo foi um dos fundamentos da profissionalização do campo no século XX.

Os pesquisadores compreendem as organizações como instituições retóricas, uma vez que tratam de realidades socialmente construídas através da comunicação e interpretadas por seus atores no campo do simbólico. O foco se dá na análise das metáforas enquanto ferramentas retóricas pelo fato de os entrevistados estarem bastante afeitos a essa figura de linguagem quando falam de sua profissão. Usa-se a teoria de Richards (1936) do “teor” e do “veículo” nesse entendimento das metáforas − o teor é o tema significado na metáfora, e o veículo é a figura de linguagem usada para expressar o conceito.

As 18 entrevistas foram conduzidas ao longo de junho de 2013, com colaboradores de 9 jornais de médio porte, escolhidos a partir de sua posição no ranking de mercado. As entrevistas foram transcritas e analisadas por cada autor individualmente, que identificaram blocos de uso de metáforas e classificaram esses blocos em categorias. Entre os achados do estudo estão metáforas que dizem respeito às divisões entre ambos os setores, antropomorfização das organizações e a visão delas enquanto organismos vivos. Essas metáforas se dividem em duas grandes categorias: a figura do “edifício” [building] e a do “ecossistema” [ecological].

Na categoria do edifício, a metáfora principal é a do conhecido muro que separa o comercial da redação, muitas vezes representando a distância física literal entre os setores. O muro é sempre evocado nos discursos para representar a independência jornalística, mas ele abaixa quando a receita cai. Há também evocações à figura do silo (expressando comportamento antissocial), das fronteiras (que limitam a mobilidade entre diferentes territórios) e das linhas (separações menos rígidas que o muro, que podem ser atravessadas caso necessário).

Na categoria do ecossistema, essas metáforas demonstram expressões em favor da necessidade de mudança (adaptação, evolução) da divisão tradicional em função da sobrevivência dos jornais. Segundo os autores, os executivos tanto do comercial quanto do editorial falam em mudanças no “ambiente” ou na “paisagem” dos negócios, fora de seu controle direto. Essa metáfora também alude à interconexão entre elementos que dependem da colaboração um do outro para evoluir e sobreviver, o que requer adaptação, experimentação e criatividade. Esse grupo de metáforas também evoca uma naturalização das relações do campo, legitimando algumas práticas de modo amoral. Outras metáforas encontradas incluem a noção de que os jornais estão em guerra e a antropomorfização das organizações (apontando o seu compromisso com crenças e valores).

Artemas, Vos e Duffy (2016) concluem apontando que as metáforas que evocam construções representam o passado, enquanto que as que usam figuras de ecossistema refletem o futuro da prática profissional do jornalismo. Eles também relatam que não há muita discordância entre os profissionais do comercial e da redação. Ao contrário: indicam a percepção mútua da importância do trabalho nas duas esferas e a necessidade de colaboração e adaptação aos novos cenários, ainda que insistam na separação. O texto termina apontando as limitações do estudo (amostra reduzida dentro de um cenário restrito) e sugerindo estudos futuros.

Ainda que o estudo tenha se concentrado em um cenário específico norte-americano, ele reflete uma discussão bastante geral no que diz respeito às mudanças que o campo vive atualmente. Na busca pela forma como a separação entre as atividades jornalísticas são percebidas pelos profissionais do comercial e da redação, os autores se depararam, dentro de sua amostra, com um consenso: a necessidade de que ambos os setores trabalhem em colaboração.

A separação das atividades parece, segundo o texto, cercear a possibilidade de o jornalismo como negócio se manter existindo, o que levanta uma série de discussões sobre a quem o jornalismo serve. O artigo, porém, não desenvolve essa discussão, mantendo-se na análise das figuras de linguagem empregadas pelos entrevistados.

Historicamente, foi a construção desse muro separador que caracterizou a progressiva profissionalização e a legitimação da atividade jornalística. Foi justamente a crescente importância da publicidade nas mídias que financiou o jornalismo e permitiu aos repórteres se “aterem aos fatos”, efetivamente construindo o tal muro (FRAGA, 2016). No entanto, a análise das metáforas aponta para uma visão do futuro por parte dos entrevistados: o muro representa um passado, que precisa ser superado por adaptações em função da necessidade de sobrevivência. Esse paradoxo indica que a discussão é complexa, diante da necessidade da atividade nas democracias modernas: o jornalismo é necessário pelo que é capaz de realizar. Mas, uma vez que sua independência possa ser contaminada e comprometida, ele deixa de ser capaz destas realizações.

Não é o propósito do artigo analisado aprofundar a discussão a respeito de que forma a colaboração entre comercial e editorial poderia se dar na prática, mas algumas pistas aparecem de forma não explícita. É o caso da “publicidade nativa”, citada no estudo apenas en passant. Defendida como um possível modelo de negócio para veículos de mídia em geral e para o jornalismo em particular, a publicidade nativa é um tipo de publicidade que incorpora o formato padrão da mídia onde é veiculada.

Alguns jornais de grande público têm feito uso desse modo de publicidade para levantar receitas, mas se trata de um tema polêmico no meio — ainda que o estudo de Artemas e colegas tenha encontrado consenso, uma vez que borra as fronteiras entre o que é notícia e o que não é (CASTILHO, 2014). Questiona-se se o uso de avisos legais (disclaimers) seria suficiente para que os leitores identifiquem corretamente os conteúdos, ou se, tendo sido usado com sucesso nas soft news, esse formato publicitário seria apropriado para hard news (THEOTONIO; LIMA, 2018).

Essa discussão tem relação com debates ainda mais antigos, que não surgiram com a pressão que as mudanças tecnológicas impuseram ao modelo de negócios da atividade jornalística: quem seria o público dos veículos, leitores ou anunciantes? A internet aprofundou esse dilema quando permitiu uma relação dos anunciantes com seu público sem a necessidade de “atravessadores”. Sem resposta fácil, noticiosos do mundo todo buscam modelos de negócio que permitam sua sobrevivência — principalmente com os problemas intrínsecos do modelo do paywall, outra parede a ser atravessada — e, ao mesmo tempo, não comprometam sua liberdade e responsabilidade jornalística.

REFERÊNCIA PRINCIPAL

ARTEMAS, K.; VOS, T. P.; DUFFY, M. D. Journalism Hits a Wall: Rhetorical construction of newspapers’ editorial and advertising relationship, Journalism Studies, v. 19. n. 7, p. 1004-1020, 2016.

REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES

BOURDIEU, P. The Political Field, the Social Science Field, and the Journalistic Field. In: BENSON, R.; NEVEU, Erik. Bourdieu and the Journalistic Field. Malden, MA: Polity, p. 29–47, 2005.

CASTILHO, Carlos. Publicidade que parece notícia. Observatório da Imprensa, 14 de novembro de 2014.

FRAGA, B. N. A relação histórica entre jornalismo e publicidade. In: 3º Encontro Centro-Oeste de História da Mídia. Campo Grande-MS: Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia, 2016.

RICHARDS, I. A. The Philosophy of Rhetoric. New York: Oxford University Press, 1936.

SEWELL, W. H. A Theory of Structure: Duality, Agency, and Transformation, American Journal of Sociology. v. 98, n. 1, p. 1-29, 1992.

THEOTONIO, P. N. V.; LIMA, V. A. O. A publicidade nativa como modelo de negócio para o Webjornalismo: o caso BuzzFeed, Temática, v.14, n. 5, 2018.

* Fabiane A. Lima é doutoranda em Design pela UFPR e mestre em Tecnologia pela UTFPR. Transita entre o Design de Interação, da Informação e a Comunicação, tem paixão por educação, editorial e audiovisual. E-mail: fabianelim@gmail.com.

As opiniões expressas pela(o)s autora(e)s pertencem a ela(e)s e não refletem necessariamente a opinião do Grupo de Pesquisa e nem de seus integrantes.

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