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“Transparência ofuscada”: como a lógica matemática das redes pode ser uma limitação para a transparência

Por Naiza Comel*

O filósofo alemão Dieter Mersch, diretor do Instituto de Teoria da Universidade de Artes de Zurique, tem seu trabalho ligado à filosofia da mídia, estética e teoria da arte, semiótica, hermenêutica, pós-estruturalismo, filosofia da imagem e da linguagem. A concepção do medium como algo que se esconde no momento da sua manifestação é desenvolvida extensivamente em sua obra e seus estudos levaram ao desenvolvimento de uma teoria negativa dos media. No artigo “Obfuscated Transparency”, o tema é abordado do ponto de vista da relação com a transparência e como os meios utilizados podem ofuscar a busca por uma divulgação das informações – ele defende que a transparência está ligada a um meio, o que a obscurece.

Para Mersch (2018, p. 266), o meio “não é neutro; em vez disso, impacta os processos e procedimentos que condiciona, assim como um aparato, que imediatamente torna a ação possível e a impede”. Toda mediação, esclarece, “modifica, influencia e transforma a mediada” (MERSCH, 2018, p. 267). Os avanços tecnológicos modificaram as formas de divulgação de informações e de conexões entre as pessoas, mas o filósofo apresenta muitas ponderações sobre os reais avanços conquistados para a transparência e a participação com estas novas conexões. Ele destaca que à dimensão mística da transparência (que envolve justiça, liberdade e autonomia), as redes digitais contemporâneas trouxeram ainda uma visão de participação não hierárquica e igualitária, assim como de acesso ilimitado à informação e de neutralidade do meio.

O estudioso entende que a comunicação e a vida pública são muito impactadas pela lógica estritamente matemática que determina a transparência garantida pela tecnologia. Mersch apresenta dois aspectos importantes para o debate destes limites da transparência em virtude da lógica matemática. O primeiro diz respeito à possibilidade de os usuários forjarem conexões com pessoas, grupos, conhecimento, ao utilizarem os mesmos protocolos, ferramentas e formatos. Por outro lado, aponta ele, esta lógica matemática não leva em conta se a informação é falsa ou verdadeira, se é útil ou inútil, o importante é que permaneça em circulação. Assim, “abrem espaço para a ignorância, mentiras e ‘fatos alternativos’, colocando-os no mesmo patamar de afirmações verdadeiras em um mundo cada vez mais indiferente de informações” (MERSCH, 2018, p. 269).

Desta forma, defende Mersch, o ideal da transparência é distorcido sob o domínio da tecnologia. O perigo da instrumentalização, abordada por outros autores, também aparece na análise do pesquisador. O autor, porém, vai além, ao abordar a questão das mudanças na sociabilidade com o uso da internet, com destaque para as redes sociais. Para ele, problemas como sociabilidade e transparência acabam sendo reduzidos às questões de hardware. As redes sociais, acredita, são mero vestígio de diálogo e comunicação – a conectividade não levaria à coletividade: “(…) relações da Web não constituem conexões vinculantes, nem constituem uma comunidade ou um modo de vida, que é fundado na partilha coletiva de sentido e ‘capacidade de resposta’” (MERSCH, 2018, p. 276). O pesquisador conclui apontando que a “decadência da sociabilidade afeta a possibilidade de transparência e liberdade, que permanecem as promessas perpetuamente não cumpridas da era digital” (MERSCH, 2018, p. 279).

Reflexões sobre as limitações geradas pela transparência tecnológica estão presentes também no trabalho desenvolvido por Clare Birchall (King’s College London). Ela, que tem se dedicado a pesquisas da relação entre transparência e sigilo na vida cultural e política, aborda no artigo “Interrupting Transparency” o desafio que o estilo político de Donald Trump e seus primeiros meses de Administração impõe às lógicas de transparências adotadas até então. O trabalho compreende uma análise de como a publicidade das ações de governo estão presentes na vida americana, inclusive já determinadas em sua Constituição.

A questão tecnológica é debatida com mais força ao descrever as políticas de dados abertos instituídas no Governo de Barack Obama. Para Birchall (2018, p. 348), “a transparência tecnocrática deve ser considerada não como um meio passivo que torna visível o funcionamento do Estado, mas como uma série de disposições que estão longe de serem transparentes”. Apesar de apontar que os dados governamentais abertos transferem a responsabilidade para os internautas e, portanto, são uma limitação, Birchall entende que possíveis reduções da disponibilização de dados com o governo de Trump podem ter um grande impacto na transparência. Outros aspectos que têm significativa influência sobre as ações e a própria percepção sobre transparência nos EUA, aponta Birchall (2018), são a invocação de teorias da conspiração (evidentes segundo a autora durante a campanha de Trump e o início da presidência) e as Fakes News, em que o conceito de verdade é relativizado.

Birchall (2018, p. 354) relata que “camadas indutoras de vertigem de inverdades, meias-verdades, mentiras, exageros, fatos descontextualizados e propaganda permitiram que Trump formasse a opinião pública através de ‘apelos à emoção e crença pessoal’ ao invés de ‘fatos objetivos’”. Mais do que isso, explica a pesquisadora: Trump passou a usar o termo “fake news” não apenas para matérias com inverdades, mas para todas que não estivessem alinhadas com o objetivo de sua administração, incluindo neste escopo matérias da grande imprensa. Birchall (2018, p. 355) detalha: “‘Falsa’ (…) designa o tom crítico em vez de uma falsificação. Torna-se um atalho para qualquer notícia que Trump gostaria que fosse rejeitada”.

Assim como Mersch (2018), a estudiosa aborda o papel das redes sociais na disseminação dessas informações na “era da pós-verdade”. Birchall cita Dean (2017) para explicar que cada enunciando é “comunicativamente equivalente” para os algoritmos, não importando se é uma mentira ou de um fato – inclusive, o primeiro tem mais chances de circular com rapidez.

Trump, resume Birchall (2018, p. 359-360), “mudou o curso da história da transparência americana”. O cenário apresentado, entretanto, é para a pesquisadora uma oportunidade para repensar a transparência. Ela sugere uma “transparência radical” que “(…) indica não mais (da mesma) transparência, quer transparência populista moralista ou dados tecnocráticos impulsionando a transparência, mas uma transparência robusta o suficiente para lidar com as figuras, estratégias e políticas ‘pós-verdade’” (BIRCHALL, 2018, p. 363).

REFERÊNCIAS

MERSCH, Dieter. Obfuscated Transparency. In: Transparency, Society and Subjectivity. Palgrave Macmillan, Cham, p. 259-282, 2018.

BIRCHALL, Clare. Interrupting Transparency. In: Transparency, Society and Subjectivity. Palgrave Macmillan, Cham, p. 343-367, 2018.

* Doutoranda e mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. Atua na linha de pesquisa Comunicação e Política e integra o Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Tecnologia (PONTE).

As opiniões expressas pela(o)s autora(e)s pertencem a ela(e)s e não refletem necessariamente a opinião do Grupo de Pesquisa e nem de seus integrantes.

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