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“Isso te obriga a publicar alguma coisa”: Rumo a uma taxonomia de práticas jornalísticas des-democratizantes

Por Maria Carolina Ferreira Santos*

O artigo “It Forces You to Publish Some Shit”: Toward a Taxonomy of De-Democratizing Journalistic Practices” escrito por Ricardo Ribeiro Ferreira, pesquisador nas áreas de comunicação política e estudos do jornalismo, foi publicado pelo jornal acadêmico “The International Journal of Press/Politics” em 2024 e explora como o jornalismo pode contribuir para o retrocesso democrático, especialmente quando capturado por elites empresariais e políticas.

O texto investiga como jornalistas e organizações de notícias no Brasil desempenharam um papel ativo na desdemocratização do país, adotando práticas jornalísticas que comprometeram a representação justa e as funções normativas da mídia em eventos políticos chave, como a Operação Lava Jato, as eleições de 2018 e os primeiros anos do governo Bolsonaro.

Este estudo é relevante porque desafia a visão tradicional do jornalismo como um agente passivo em processos de desdemocratização, destacando práticas intencionais e sistemáticas de manipulação de informações. Além disso, a construção de uma taxonomia dessas práticas oferece uma ferramenta analítica robusta para entender o papel do jornalismo em contextos de retrocessos democráticos, sendo útil não apenas para o caso brasileiro, mas para sistemas de mídia globalmente.

Nesse contexto, em uma breve introdução, o autor já nos mostra que nessas circunstâncias, em que o jornalismo pode contribuir para o retrocesso democrático, os jornalistas tendem a falhar na responsabilização de atores políticos e na oferta de informações relevantes ao público, comprometendo a imparcialidade em favor de interesses privados. Apesar disso, análises detalhadas sobre práticas jornalísticas que enfraquecem a democracia ainda são escassas e concentradas principalmente em análises de conteúdo.

A pesquisa, baseada em 40 entrevistas semiestruturadas e três estudos de caso no Brasil (2016–2021), propõe uma tipologia de práticas jornalísticas desdemocratizantes: orientação branda (simulação de equilíbrio com viés partidário), orientação rígida (censura ou pautas impostas) e orientação antecipatória (ações baseadas em percepções de instruções anteriores). Os resultados também apontam que tais práticas podem ser internalizadas, substituindo normas democráticas, e revelam uma dinâmica entre censura e autocensura, em que jornalistas são compelidos a agir de formas específicas.

As democracias modernas enfrentam uma tensão intrínseca entre as tradições liberal e igualitária. Enquanto o liberalismo prioriza as liberdades individuais e o Estado de Direito, a igualdade busca garantir a voz política igualitária entre os cidadãos. A articulação dessas dimensões é fundamental para a promoção do pluralismo e para evitar que um princípio seja sacrificado em prol do outro (Mouffe, 2002, 2007). Entretanto, democracias não são estáticas; componentes como liberdades civis e mecanismos de accountability podem se tornar disfuncionais, transformando regimes em democracias “defeituosas” (Merkel, 2004). Nesse contexto, o jornalismo desempenha um papel crucial na sustentação dos pilares democráticos, mas, quando capturado por interesses econômicos ou políticos, pode contribuir para retrocessos democráticos (Dragomir, 2018; Schiffrin, 2021). Este artigo busca investigar como práticas jornalísticas contribuíram para o declínio democrático no Brasil entre 2016 e 2021, propondo uma taxonomia das práticas de desdemocratização identificadas.

Na revisão bibliográfica, pesquisas apontam que a captura da mídia, marcada pela interferência de elites políticas e econômicas, prejudica o desempenho de funções jornalísticas normativas, como a promoção de accountability e deliberação pública (Bogaards, 2018; Schiffrin, 2017). Em contextos de retrocesso democrático, organizações de notícias tendem a se tornar ferramentas de propaganda ou a focar em conteúdos lucrativos, negligenciando o interesse público (Stiglitz, 2017). No entanto, ainda são escassos os estudos que exploram, de maneira sistemática, como jornalistas atuam dentro dessas estruturas capturadas, especialmente em países em desenvolvimento, onde clientelismo e controle editorial são prevalentes (Cook, 1998; Deuze, 2008). O presente estudo avança ao examinar práticas concretas de desdemocratização no jornalismo brasileiro.

Partindo para o caso do Brasil, após a redemocratização, o país adotou um modelo político baseado na Constituição de 1988, que articulava princípios liberais e sociais, promovendo direitos individuais e participação igualitária. Contudo, desde 2016, o país enfrenta um declínio democrático contínuo, evidenciado por quedas em cinco índices medidos pelo projeto V-Dem. A mídia tradicional, que deveria desempenhar um papel crítico nesse contexto, foi acusada de contribuir para o enfraquecimento democrático.

Exemplos emblemáticos incluem o impeachment da presidente Dilma Rousseff, onde a cobertura midiática enfatizou aspectos que legitimaram a destituição sem explorar possíveis irregularidades, e a Operação Lava Jato, tratada como um símbolo de combate à corrupção, mas com viés que favoreceu determinados atores políticos. Na eleição de Jair Bolsonaro, a mídia minimizou elementos autoritários de sua candidatura, contribuindo para sua ascensão ao poder. Essas ações refletem uma substituição do interesse público por narrativas moldadas por interesses privados e comerciais.

A cobertura jornalística brasileira durante o período também foi marcada por uma interpretação distorcida de imparcialidade. Ao evitar escrutinar políticos ou eventos com potencial antidemocrático, a mídia contribuiu para a consolidação de práticas que minaram a confiança no sistema político e no pluralismo democrático.

Para metodologia, o estudo adotou uma abordagem qualitativa para identificar práticas de desdemocratização no jornalismo brasileiro. Foram realizadas 40 entrevistas semiestruturadas com jornalistas de veículos de grande circulação, como Globo, Record e Folha/UOL. As entrevistas exploraram práticas cotidianas e decisões editoriais em eventos políticos-chave, como o impeachment de Dilma Rousseff, a Lava Jato e o governo Bolsonaro.

As respostas foram analisadas por meio de codificação textual aberta e direcionada, permitindo a identificação de padrões e a construção de uma taxonomia de práticas desdemocratizantes. Apesar de limitações, como o viés de autorrelato, o método revelou tendências institucionais e individuais que moldaram a cobertura midiática durante o período de declínio democrático.

Nos resultados e discussão, o estudo identificou três categorias principais de práticas desdemocratizantes no jornalismo brasileiro: steering suave, steering rígido e steering antecipatório. O steering suave refere-se a orientações editoriais sutis para moldar reportagens de maneira alinhada a interesses organizacionais, enquanto o steering rígido envolve instruções explícitas e diretas para moldar o conteúdo de forma enviesada. Já o steering antecipatório ocorre quando os jornalistas, baseando-se nas expectativas percebidas de seus empregadores, internalizam práticas desdemocratizantes como parte de sua rotina.

Essas práticas refletem a captura institucional do jornalismo, onde decisões editoriais são determinadas por interesses econômicos e políticos, comprometendo a autonomia e a imparcialidade jornalísticas. Além disso, a análise revelou que a mídia brasileira desempenhou um papel ativo na promoção de narrativas que desestabilizaram o pluralismo democrático, especialmente ao favorecer certos grupos políticos e minar a credibilidade de opositores.

As implicações dessas descobertas são significativas. Ao contrário da visão predominante de que o jornalismo falha ao cumprir suas funções democráticas, o estudo argumenta que, em contextos de desdemocratização, jornalistas e organizações de mídia podem ser agentes ativos na erosão democrática.

Concluindo, esse trabalho nos mostra que práticas jornalísticas desdemocratizantes no Brasil não são meramente falhas ou desvios isolados, mas parte de um padrão institucionalizado que reflete a captura da mídia por interesses privados. A taxonomia desenvolvida fornece uma base para investigações futuras, especialmente em contextos comparativos, onde práticas semelhantes podem ser observadas. Embora formas de resistência tenham sido identificadas, sua eficácia é limitada, o que reforça a necessidade de análises mais amplas sobre mecanismos de preservação da autonomia jornalística em cenários de retrocesso democrático.

Referência

FERREIRA, Ricardo Ribeiro. “It Forces You to Publish Some Shit”: Toward a Taxonomy of De-Democratizing Journalistic Practices. The International Journal of Press/Politics,2024.

* Maria Carolina Ferreira Santos é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Bolsista de Iniciação Científica do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberanias Informacionais (INCT-DSI) e integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Tecnologia (PONTE).

As opiniões expressas pela(o)s autora(e)s pertencem a ela(e)s e não refletem necessariamente a opinião do Grupo de Pesquisa e nem de seus integrantes.

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