Por que a democracia brasileira não morreu?
Por Bruno Z. Kotvisky*
O artigo “Why Didn’t Brazilian Democracy Die?”, publicado pela Cambridge University Press é de autoria de Marcus André Melo e Carlos Pereira. Melo é professor da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE) e ex-professor visitante do MIT e da Universidade Yale (EUA). Pereira é professor titular da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Pós-Doutor em Ciência Política pela University of Oxford.
Os autores buscam entender as razões pelas quais a democracia brasileira conseguiu sobreviver ao governo de Jair Bolsonaro, apesar das predições negativas de grande parte dos especialistas. Se pensava que um presidente de extrema-direita populista poderia abusar de seus poderes para minar o sistema de freios e contrapesos, prejudicar o estado de direito e, assim, ameaçar a democracia liberal. Porém, ainda que tenham havido retrocessos em termos de políticas públicas, as instituições democráticas resistiram.
A teoria do quase-erro (“near miss”) poderia explicar o caso brasileiro. O quase-erro ocorre quando uma democracia é exposta a forças sociais, políticas ou econômicas que podem catalisar um retrocesso democrático, mas que conseguem se manter firmes e superar o momento de crise. Mas os autores também cogitaram a possibilidade de que o Brasil foi um caso de recuperação rápida, ou seja, quando uma democracia passa de um limiar mínimo e atinge estágios iniciais de autoritarismo, mas consegue se recuperar.
Os autores defendem então a tese de que a democracia resistiu, muito graças a uma estrutura institucional resiliente. O episódio do 8 de janeiro não gerou efeitos reais sobre o resultado das eleições, os militares não aderiram à tentativa de golpe, o candidato eleito assumiu e governa com apoio do Congresso. Bolsonaro não possuía os meios institucionais tampouco o apoio político necessário para arcar com os custos de uma retração democrática. O sistema de freios e contrapesos brasileiro teria se mostrado robusto o suficiente para aguentar os choques autoritários, e a sociedade civil teria permanecido vigilante.
Mas basta um governante autoritário para haver retrocesso democrático? A literatura parece mostrar que não. Weyland (2022) aponta que apenas 24% dos líderes populistas que assumiram o governo de um país democrático culminaram em retrocesso, e desses, apenas um terço deles conseguiu causar deterioração significativa para a democracia. Em outro estudo, Brownlee and Miao (2022) se baseiam em um século de evidências de casos de retrocesso e rupturas democráticas para afirmar que apenas em uma minoria de casos, o resultado foi um governo autoritário. Little and Meng (2023), por sua vez, não encontraram evidências de um declínio democrático global na última década. Os autores ressaltam que, mais do que tendências globais, se faz necessário analisar cada caso dentro de suas particularidades para poder explicar possíveis retrocessos ou resiliências democráticas.
No caso do Brasil, em particular, a ascensão de Bolsonaro foi resultado de uma “tempestade perfeita”. Os escândalos de corrupção, a consequente operação Lava Jato e a deterioração da imagem da classe política que dela resultou se somaram a uma crise econômica mal gerida e o fim do boom econômico das commodities. Apesar de ser um político de carreira do “baixo clero”, o papel anti-sistema que Bolsonaro assume fez com que ele pudesse surfar a onda de insatisfação do eleitorado. Há de se ressaltar, porém, que sua vitória foi mais uma rejeição dos eleitores ao establishment do que uma verdadeira adesão a seus ideais autoritários ou a seus valores reacionários. E mesmo sua postura de ataque à “velha política” logo teve que ser revertida, devido às suas várias derrotas na arena legislativa, mas principalmente à ameaça de impeachment. Sua coalizão com o Centrão foi feita já de uma posição de fragilidade, o que garantiu ainda maior controle orçamentário pelo Legislativo.
O Brasil possui um complexo conjunto de instituições baseadas no consenso que permitem a representatividade dos mais variados interesses dentro do sistema político. A alta fragmentação partidária demanda um manejo muito mais criterioso da atividade legislativa. Além disso, o sistema federativo dá considerável autonomia aos governadores dos estados, o que traz ainda mais complexidade para o arranjo institucional. O sistema de freios e contrapesos é composto também pela Suprema Corte Federal, o Procurador Geral da República, a Polícia Federal, Tribunal de Contas, agências reguladoras autônomas, e uma imprensa livre e competitiva. Segundo os autores, tal complexidade institucional derruba a tese de que o retrocesso democrático não ocorreu no caso de Bolsonaro (ou de Trump) por conta de sua incompetência. Cada um desses atores teria sido responsável por um obstáculo em sua trajetória autoritária, o que teria evitado a derrocada da democracia brasileira.
Os autores concluem, portanto, que as instituições democráticas brasileiras, bem como uma sociedade vibrante e vigilante, teriam sido fundamentais para que “o sapo pulasse para fora da panela antes da fervura”. Um sinal disso seria a condenação de Bolsonaro por abuso de poder pelo Tribunal Superior Eleitoral, e a suspensão de sua possibilidade de candidatura por 8 anos.
Nota-se que o texto procura não só levantar a literatura existente sobre retrocesso democrático, mas também descrever a conjuntura brasileira de modo a fundamentar o argumento defendido pelos autores. O fato de que o texto é fruto de um painel apresentado em um congresso internacional pode também explicar seu caráter mais descritivo. Paradoxalmente, os autores não citam a conjuntura internacional envolvida na prevenção do golpe de estado tramado por Bolsonaro e os militares (Folha de São Paulo, 2022). A pergunta que fica ausente no artigo é se, em um contexto internacional menos favorável, essa estrutura institucional brasileira teria sido o suficiente para evitar uma ruptura democrática? De qualquer modo, o artigo se faz fundamental em tal debate por romper com a tendência “apocalíptica” da literatura atualmente, onde a mera sombra de uma figura autoritária na corrida eleitoral é o suficiente para se decretar a morte da democracia.
REFERÊNCIA PRINCIPAL
MELO, Marcus André; PEREIRA, Carlos. Why Didn’t Brazilian Democracy Die?. Latin American Politics and Society, v. 66, n. 4, p. 133-152, 2024.
REFERÊNCIA COMPLEMENTAR
*Bruno Z. Kotvisky é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Paraná, na Linha de Formação em Ciência Política. Mestrando em Ciência Política pela UFPR. Pesquisador na linha de Instituições do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia ReDem – Representação e Legitimidade Democrática (CNPQ).
As opiniões expressas pela(o)s autora(e)s pertencem a ela(e)s e não refletem necessariamente a opinião do Grupo de Pesquisa e nem de seus integrantes.