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Impeachments como desafios de análise: uma resenha

Alice Lorencetti*

O Impeachment de Dilma Rousseff como grande e impactante evento político desafiou e continua a desafiar inúmeros cientistas políticos e analistas a determinar suas causas, condições e efeitos para o contexto político e econômico do país. Diversas e variadas são as análises que pretendem desenhar e mapear o cenário político responsável por conduzir o governo petista a esse destino.

Análises de conjuntura servem como um “retrato dinâmico de uma realidade”, como expõe José Diniz Alves em “Análise de conjuntura: teoria e método” (2008). Por esse motivo, especialmente ao considerarmos análises que pretendem determinar as raízes de grandes eventos, é possível consultá-las em diferentes épocas como documentos históricos. É com foco nesse propósito que aqui colocamos frente a frente dois textos de contextos distintos que buscam respostas estruturais para duas relevantes rupturas do panorama político brasileiro: os Impeachments de Fernando Collor (1992) e Dilma Rousseff (2016).

O cientista político Sérgio Fausto escreve o artigo “O ponto a que chegamos – Da Constituição de 1988 à eleição de Jair Bolsonaro” para a Revista Piauí em Fevereiro de 2019. Realizando uma retomada das condições políticas e econômicas brasileiras desde antes do Impeachment de Dilma Rousseff, o autor contrasta suas esperanças da época com os fatos ocorridos posteriormente: para ele, foi inesperada a forte e extensa ascensão da direita no país nas eleições de 2018.

Dentre os elementos mais relevantes para explicar esse período, o autor coloca a “corrupção sistêmica” no centro, atribuindo à Lava Jato o título de principal responsável por impedir que esta corrupção avançasse. Além disso, oferece destaque às manifestações de 2016 contra o governo Dilma, com a certeza de que seu governo produzira um “desastre econômico” e toma o Impeachment como responsável pela polarização entre esquerda petista e direita bolsonarista e ainda como produtor de um terreno petista na guerra por narrativas, sendo este considerado um “alto negócio” pelo autor. Fausto dá importância à ação de fortes atores políticos nos últimos 30 anos, localizando um esgotamento dos acordos feitos entre elites. Ainda entende como raiz das crises econômica, política e moral de 2014 um reformismo tomado por um desenvolvimentismo “apressado e míope” por parte dos governos petistas. O autor aponta também a quebra de esperanças da classe média que protestava, insatisfação que teria sido causada por má administração financeira. Mais a fundo, Fausto ainda critica o modelo tributário estabelecido a partir da Constituição de 1988, entendendo este como o ponto de origem dos problemas das décadas seguintes.

Como citado anteriormente, é um exercício necessário comparar análises de conjuntura que pretendem estipular origens estruturais para os problemas apontados: é possível, assim, construir um panorama das questões que permanecem sendo tratadas como tais e das que deixaram de ser protagonistas dos fenômenos tratados. Por esse motivo, é válido colocar em perspectiva o texto “A Democracia Brasileira de 1985 à década de 90: A síndrome da Paralisia Hiperativa” (1994) do também cientista político Bolívar Lamounier.

Lamounier abre a discussão debatendo a respeito do que haveria de “errado” na democracia Brasileira se, afinal, não passamos por processos de (tentativa de) ruptura como nossos vizinhos da América Latina. Para o autor, desejando seguir um caminho distinto dos que aderem aqueles que ou acreditam numa cultura intrinsecamente anti-democrática ou que admitem a democracia como resistente a todo e qualquer choque, declínios da governabilidade e da legitimidade das instituições são elementos que podem ameaçar a democracia brasileira.

O autor trabalha com a hipótese de uma “paralisia hiperativa”, formada a partir dos anos 1980 e da redemocratização – estes sendo momentos de transição que teriam sido responsáveis por dilemas políticos e econômicos, bem como criadores de estruturas que afetariam a democracia décadas mais tarde. Destas estruturas teria surgido um frágil sistema partidário e o que o autor chama de “mecanismos plebiscitários”. Tal tipo de paralisia viria de uma síndrome de governabilidade alimentada por um sentimento de desagregação entre as elites, que tenta suprir esta desconexão estendendo debates e colocando mais decisões nas mãos do público, tudo isso num contexto econômico e social não favorável. Estes elementos em conjunto despenderiam muita energia e abririam espaço para interesses corporativistas que não possuíam espaço na Constituição de 1988.

Lamounier está preocupado com a crise de legitimidade das instituições e aponta para uma possível problemática no sistema partidário, assim como Fausto. É possível notar que as preocupações não mudaram se pensarmos que o texto de Lamounier é de 1994 e o de Fausto, 2019. Destas preocupações podemos entender que o problema da legitimidade tenha se acentuado e, portanto, o apontamento de Fausto permaneceria relevante, ainda que antigo. É possível ainda notar o quão antiga é a questão do sistema partidário, ainda que a preocupação que carrega atualmente possa não se justificar: há 40 anos esta questão se apresenta na literatura e a falta de legitimidade pode ser entendida como ameaça muito mais fatal e imediata do que o sistema partidário se pensarmos nos constantes ataques às instituições e aos demais poderes perpetrados por Jair Bolsonaro.

Em seu texto de 1994, Lamounier aponta como ultrapassada a ideia de que o passado colonial e escravagista brasileiro ainda impere de alguma forma, entretanto, tal noção parece extremamente relevante e atual – pode ter perdido terreno na literatura, mas as análises da violência na periferia e da superlotação carcerária embasam esta ideia ainda hoje. Além disso, a ideia de que o Impeachment de Fernando Collor teria levado ao “velho estatismo” se revela precoce e ingênua para a época, dado o salto neoliberal dos anos 1990. Da mesma forma, o autor é excessivamente otimista ao atribuir uma boa taxa de informação política à população. A centralidade que Lamounier e Fausto conferem às elites e às suas relações internas é interessante e dá rígido fundamento às suas análises.

O artigo de Sérgio Fausto aparenta ser dotado de uma vontade de chocar e ser “crítico” de coisas “incriticáveis” na esquerda. O autor se distrai muitas vezes nas questões centrais dos problemas debatidos. Sua avaliação da Operação Lava-Jato como detentora de um papel central para impedir que houvesse mais corrupção é um exemplo. Primeiramente, esta ideia de uma corrupção inerente às instituições, que corrói tudo e todos que encontra pela frente, é um pensamento extremamente simplista e que muito se aproxima do discurso reacionário do governo atual. Em segundo lugar, o autor se equivoca em não entender a Lava-Jato como operação formada por atores com interesses, ainda que em outros momentos acerte em dar atenção à ação dos agentes políticos. O texto de Fausto é de fevereiro de 2019 e, sendo assim, podemos admitir que no momento da análise o autor ainda não possuía conhecimento das reportagens de junho de 2019 que evidenciaram vieses da operação, como a do jornal The Intercept.

Outra questão semelhante ocorre quando aborda os dados a respeito da segurança pública e dá razão para o discurso que pauta o aumento da segurança perante uma escalada de violência e que privilegia um aumento dos aparatos de combate. Oras, só o autor se preocupa em demonstrar estes dados. O discurso da direita que se baseia na urgência e na falta de segurança pública para promover discursos punitivistas busca estimular um sentimento de medo que em nada depende dos números.

O autor dá ainda muitíssima importância e centralidade ao Partido dos Trabalhadores, como se este único partido fosse o responsável por todo um conjunto de fatores dependentes de todo um conjunto de condições.  Este entendimento equivocado em relação ao Partido dos Trabalhadores ocorre também quando o autor concebe o Impeachment como um “alto negócio” para o PT, pois lhe daria espaço na guerra de narrativas. De que maneira passar por um processo traumático tanto para a imagem quanto para a estrutura de um partido poderia ser benéfico? Ao tentar ser polemicamente crítico, o autor acaba caindo em um discurso contraditório: é capaz de defender a reforma da previdência enquanto tenta apoiar suas opiniões “impopulares” em uma social-democracia que já não carrega o mesmo sentido de antes.

É evidente que criticar análises anos depois de suas publicações é um trabalho muito mais simples do que elaborá-las. Provavelmente os autores reformulariam muitos de seus apontamentos a partir do conhecimento atual da realidade. Retomamos então a importância de localizar as análises em seus respectivos contextos, com sua respectiva disponibilidade de informações. Entretanto, não deixa de ser importante retomar as observações dos analistas a fim de comparar previsões e esperanças com o sucedido, nos beneficiando da distância e do acúmulo de experiências que hoje possuímos em relação aos eventos passados.

REFERÊNCIAS

ALVES, J. E. D. Análise de conjuntura: teoria e método. APARTE – Inclusão Social em Debate, Rio de Janeiro, p. 1-12, 01 jul., 2008.

FAUSTO, S. O ponto a que chegamos – Da Constituição de 1988 à eleição de Jair Bolsonaro. Revista Piauí, São Paulo, fev. 2019.

LAMOUNIER, B. A democracia brasileira, de 1985 à década de 90: a síndrome da paralisia hiperativa. In: VELLOSO, J. P. R. (org.). Governabilidade, sistema político e violência urbana. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 62-94, 1994.

GREENWALD, G.; REED, B.; DEMORI, L.; Como e por que o Intercept está publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sergio Moro. The Intercept, 9 jun. 2019.

TEIXEIRA, M. Atacar instituições é sinal de autoritarismo no mundo contemporâneo, diz Barroso no TSE ao pedir para Bolsonaro ser investigado. Folha de São Paulo, São Paulo, 2 ago. 2021.

* Alice Lorencetti é graduanda do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política (NUSP/UFPR). Cúrriculo Lattes. LinkedIn.

As opiniões expressas pela(o)s autora(e)s pertencem a ela(e)s e não refletem necessariamente a opinião do Grupo de Pesquisa e nem de seus integrantes.

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