O que torna as pesquisas em Comunicação interessantes e o debate sobre a desocidentalização
Por Maíra Orso*
Em “Against dullness: on what it means to be interesting in communication research”, Manuel Goyanes traz reflexões sobre a produção científica em comunicação e especificamente sobre os trabalhos de pesquisa padronizados em revistas da área, projetados utilizando técnicas de produção em massa e, portanto, muitas vezes “sem graça e chatos”. O autor aborda questões sobre o desenvolvimento das pesquisas empíricas e lança alguns insights de como os pesquisadores podem aumentar a probabilidade de serem influentes, atraentes e convincentes em seus trabalhos. Mais especificamente, a seguinte questão é apresentada: “o que torna as pesquisas em comunicação interessantes?”.
Para responder a essa questão, Goyanes realizou uma pesquisa por e-mail com 80 integrantes de conselhos editoriais de 16 periódicos de comunicação. A seleção de consultar esses integrantes foi justificada devido ao seu papel central no que diz respeito à identificação de concepções relativas à pesquisa de alta qualidade e, portanto, suas opiniões e experiência contribuem para a compreensão do próprio sistema de publicação. Junto a isso, a escolha dos periódicos deve-se ao fato de serem considerados os principais veículos de pesquisa de comunicação de ponta.
A pesquisa seguiu as seguintes etapas: primeiro, o autor enviou por e-mail um convite para os membros editoriais pedindo para que estes classificassem os três artigos empíricos relacionados à pesquisa em comunicação de qualquer revista acadêmica nos últimos 90 anos que eles considerassem interessantes. Após, foi solicitado que os mesmos descrevessem o motivo do interesse naqueles trabalhos e fornecessem até três palavras-chave descrevendo as principais razões do interesse nos artigos sugeridos. Desta forma, a ideia era identificar evidências sobre as principais dimensões de interesse em um artigo de pesquisa empírica em comunicação.
Como resultado, os 80 membros dos CEs nomearam 145 trabalhos e forneceram justificativas do que achavam relevante nas pesquisas. Com as indicações das palavras-chaves, Goyanes conseguiu estabelecer cinco categorias de interesse. (1) Contra-intuitivo: linhas de pesquisa que desafiam paradigmas e teorias já estabelecidos, fornecem descobertas surpreendentes e desfazem as expectativas tidas como garantidas na área. (2) Fundamental: são os estudos clássicos, pioneiros, e que possibilitam novos caminhos de pesquisa, bem como contribuições teóricas significativas e as primeiras evidências empíricas sobre determinado fenômeno. (3) Nova abordagem: pesquisas que inovem, que examinem uma teoria clássica de maneira diferente, ou que apliquem teorias estabelecidas sob uma outra perspectiva analítica. (4) Qualidade e exemplar: caracteriza a excelência da pesquisa científica em suas diversas formas, desde as propostas metodológicas, o referencial teórico aplicado, revisões e as comparações com fenômenos internacionais. E, (5) Perspicaz e prático: as pesquisas que oferecem boas descrições e diálogo dos resultados com a literatura, assim como casos ricos e convincentes.
A partir da etapa de entrevistas o levantamento possibilitou verificar uma pluralidade em relação às preferências pessoais dos entrevistados, levando em conta que de um total de 145 artigos indicados, apenas 6 (4,6%) apareceram duas ou mais vezes. O autor aborda que esse resultado indica que a definição sobre o que é interessante também tem a ver com as especializações de cada um e suas inclinações de pesquisa. Outro ponto interessante abordado, é que Goyanez demonstra, a partir das entrevistas, que o termo “empírico” perdeu seu significado original de pesquisa baseada em evidências e se tornou abreviação para a grande parte de estudos quantitativos da comunicação. A conclusão surgiu devido a alguns pesquisadores responderem que não poderiam participar de sua pesquisa, uma vez que suas abordagens eram qualitativas, ao invés de quantitativas. Isso mostra uma clara divisão no campo da comunicação entre “empiristas” e “não-empiristas”.
Já “De-westernizing communication studies: A reassessment”, escrito por Silvio Waisbord e Claudia Mellado, objetiva refletirmos sobre o debate sobre a “desocidentalização” dos estudos da comunicação e as amplas condições da produção intelectual que propõem uma mudança epistêmica no campo. Waisbord e Mellado identificam quatro dimensões ou focos de atenção dessa mudança epistêmica. São eles: (1) o objeto de estudo; (2) o material empírico; (3) as referências analíticas; e (4) as culturas acadêmicas. Com isso, diversos termos e argumentos são testados, levando em conta que nem todos os significados nem os fatores que impulsionam os apelos à “desocidentalização” dos estudos em comunicação são semelhantes no ocidente e no resto do mundo.
Nestes insights, os atores lançam uma questão-chave: “O que especificamente deve ser “desocidentalizado” no campo da comunicação?”. Para responder esta demanda, são discutidas cada uma das quatro mudanças epistêmicas elencadas, a fim de “abalar” algumas certezas alicerçadas “em um conjunto restrito de casos e perspectivas analíticas, rompendo com o provincialismo da pesquisa acadêmica” (p.366). Os autores fazem isso discutindo primeiro a dimensão do objeto de estudo.
Segundo Waisbord e Mellado, desocidentalização significa reavaliar e expandir os horizontes ontológicos dos estudos por meio da análise de questões pouco estudadas ou ausentes no ocidente. A suposição dos estudiosos que vêm pesquisando o tema é de que a pesquisa é fundamentada localmente, isto é, a realidade local e nacional é fonte constante de questões de pesquisa. É necessário, desta forma, abrir a atenção para questões que podem estar ausentes no radar analítico dos estudiosos ocidentais, mas são importantes no mundo não ocidental. Ainda, reforçam que “desocidentalizar” o objeto de estudo também se refere à análise de fenômenos de comunicação que transcendem as fronteiras geopolíticas convencionais.
Sobre a dimensão material empírico (2), ou corpo de prova, os autores indicam que há como questão subjacente a ideia de que a ocidentalização acadêmica gera generalizações dos achados, quando é necessário que sejam examinados à luz de evidências de vários cenários. Significa dizer que a “desocidentalização” nesta categoria refere-se à expansão do corpo de evidências nos estudos de comunicação, destacando a necessidade de considerar casos não ocidentais para produzir conclusões mais complexas e fortes. Na dimensão perspectivas teóricas (3), a “desocidentalização” refere-se principalmente às perspectivas teóricas originais do sul global que estão ausentes na pesquisa de comunicação no ocidente. O debate acadêmico, neste sentido, está sobre a ideia de que as culturas locais oferecem a fonte para desafiar as noções ocidentais de comunicação, pois estão “inseridas em diferentes concepções sobre conhecimento, humanidade, identidade, individualismo e comunidade” (p.368).
Na dimensão culturas acadêmicas (4), os autores explicam que significa “a forma como os estudiosos se distinguem pelas suas próprias características pessoais, experiências profissionais, dedicação ao ensino versus pesquisa e sua produção científica” (p.368). Nesta categoria, a discussão sobre “desocidentalização” solicita que seja questionada a dinâmica das culturas acadêmicas, especificamente se os padrões e práticas comuns predominantes nos Estados Unidos e Europa definem as expectativas em toda a pesquisa de comunicação globalmente. Neste quadro, Waisbord e Mellado debatem que premissas como essas são questionáveis em meio à globalização e hibridização do trabalho acadêmico, e levantam diversas questões a serem levadas em consideração.
Os autores questionam, portanto, os apelos à desocidentalização, exprimindo que, em alguns pontos, eles pisam em terreno ontológico escorregadio, pois “assumem que as estruturas intelectuais que defendem, bem como o modelo ‘ocidental’ que criticam, são estáveis e fixos” (p.368). Ainda reforçam que, mesmo que diferenças e particularidades precisem ser destacadas nas diversas regiões, é problemático abordar as perspectivas acadêmicas como se estivessem firmemente organizadas em torno de premissas imutáveis. Outro problema dos “apelos”, importante de ser mencionado, é a essencialização dos estudos de comunicação “ocidentais” como se estivessem “firme e inequivocamente organizados em torno das mesmas premissas, a saber, princípios positivistas, racionais, de interesse próprio e individualistas” (p.368).
De acordo com Waisbord e Mellado, esses princípios formam a chamada “pesquisa mainstream baseada no modelo dominante da ciência ocidental” (p.368). Porém, colocar o rótulo “ocidental” em teorias e teóricos disciplinares em comunicação que se originaram no ocidente ignora diferenças importantes. Também há os problemas de defender uma oposição binária entre formas ocidentais e não ocidentais de conhecimento acadêmico, pois é bastante difícil “encontrar elementos comuns que justifiquem caracterizações de quadros teóricos e posições epistemológicas de maneiras dicotômicas” (p.369).
Por fim, após uma revisão crítica de alguns dos principais textos sobre cosmopolitismo e o debate de desocidentalização nos estudos da comunicação e os apelos na última década para o engajamento com as perspectivas decoloniais, os autores nos convidam a refletir sobre inúmeros questionamentos sobre o que deve ou não ser desocidentalizado, embora admitam a necessidade do debate. Frisam a importância de revisitar pressupostos fundamentais sobre o campo, como o objeto de estudo, a validade e generalização dos achados, as premissas epistemológicas dos argumentos e teorias e os padrões de excelência acadêmica, indo além do simples apelo, explorando as condições em que isso acontece ou não.
Referências:
Goyanes, M. (2020). Against dullness: on what it means to be interesting in communication research. Information, Communication & Society, 23(2), 198-215.
Waisbord, S., & Mellado, C. (2014). De-westernizing communication studies: A reassessment. Communication Theory, 24(4), 361-372.
* Maíra Orso é doutoranda em Comunicação na Universidade Federal do Paraná (UFPR), mestre em Comunicação pela mesma universidade e graduada em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Bolsista de pesquisa (CAPES) E-mail: maira.m.orso@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4620441074773043
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