O apartidário, o equidistante e o aliado: Como jornalistas negociam suas identidades digitais nas redes sociais
O artigo “The nonpartisan, the equidistant and the allied: How journalists negotiate their digital selves on social media” foi publicado na Revista Journalism em 2023. A autoria do trabalho é de Azahara Cañedo (University of Castilla-La Mancha, Spain), Marton Demeter (National University of Public Service, Hungary) e Manuel Goyanes (Carlos III University of Madrid, Spain).
A respeito do processo de digitalização em curso e da importância emergente das mídias sociais na formatação e distribuição de notícias, estudos recentes têm investigado como jornalistas respondem às mudanças no ambiente midiático. No entanto, ao passo em que estes estudos promovem descobertas valiosas sobre as mudanças de hábitos, normas e performance de jornalistas contemporâneos, existem poucas investigações sobre como as práticas importadas das mídias sociais transformam e moldam as expectativas tradicionais de organizações jornalísticas.
Tendo em vista esse cenário, o estudo de Cañedo, Demeter e Goyanes problematiza as construções do “eu” de jornalistas nas mídias sociais, a fim de compreender como as dinâmicas das plataformas influenciam potenciais conflitos de interesse entre jornalistas e as organizações para as quais trabalham quando constroem suas identidades digitais. Nesse sentido, as perguntas de pesquisa que o trabalho visa responder são: (1) Como os jornalistas constroem suas identidades nas redes sociais em relação às empresas de mídia? (2) Como as mídias sociais influenciam o processo de negociação da agência e estrutura implementado pelos jornalistas?
A metodologia do trabalho é qualitativa e a técnica aplicada para a coleta dos dados consiste na realização de entrevistas em profundidade. Ao todo foram realizadas 30 entrevistas com jornalistas espanhóis. A partir delas, o estudo conceitualiza três identidades digitais diferentes entre os jornalistas: apartidária, equidistante e aliada (ou no original: Nonpartisan, Equidistant, e Allied).
Os resultados indicam que a vigilância latente que tradicionalmente governa o jornalismo ainda é muito presente nas redes sociais. Entretanto, os autores compreendem que a dissociação entre o ambiente da redação física e o ambiente digital influencia a agência e o comportamento dos jornalistas ao permitir a redefinição das identidades digitais numa posição de maior poder e autonomia.
O trabalho parte do ponto de que tradicionalmente o jornalismo tem sido compreendido como uma atividade hierárquica, na qual conflitos de interesse são tipicamente interpretados como uma ameaça, de modo que afetam as condições de trabalho e autonomia dos jornalistas. Este tema tem sido tratado em pesquisas da área a partir de uma visão corporativa, que contrapõe a propriedade dos jornais e os funcionários, ao enfatizar a ação direta dos gestores na redação. Contudo, diante de um contexto no qual o jornalismo é desenvolvido tanto em redações físicas quanto em plataformas digitais, torna-se crucial para os estudos de jornalismo um aprofundamento quanto aos potenciais conflitos de interesses que podem surgir sobre o trabalho dos jornalistas nas redes sociais. Nesse sentido, muitas questões têm surgido a respeito da maneira como os jornalistas se apresentam online em relação às organizações para as quais trabalham.
Ao adotar a teoria ator-rede (Callon, 1986; Latour, 1987, 1993, 2005; Law, 2008), baseada na ideia de que a ordem social é construída através de redes de conexões entre indivíduos humanos, tecnologias e outros fenômenos sociais, um dos pressupostos teóricos da pesquisa considera que um agente social é uma entidade híbrida de relações entre sujeitos e objetos dotados de agência (Callon e Latour, 1992). Além disso, os autores aplicam ao problema de pesquisa o princípio da simetria generalizada (Latour, 1993), que atribui a humanos e tecnologias a mesma importância nos processos sociais. A partir desse arranjo teórico, os autores compreendem que a estrutura dicotômica e hierárquica dos conflitos de interesse nas redações jornalísticas tradicionais se estende às mídias sociais. Com isso, as tecnologias digitais desempenham papéis de complexificação nos conflitos investigados.
O que há de novo é que a mudança das estruturas de poder tradicionais das redações, viabilizada pelas plataformas de mídias sociais, pode fazer com que jornalistas utilizem estratégias novas e distintas para sua construção do “eu” ao definir sua identidade digital. Tendo isso em vista, o estudo observa três variáveis: os objetivos da presença jornalística nas redes sociais, a identificação com organizações para as quais trabalham e o tipo de conteúdo dos posts. A partir da análise do que dizem os jornalistas entrevistados sobre cada variável, os autores conceitualizam três diferentes identidades digitais: apartidária, equidistante e aliada.
A identidade apartidária tem como objetivo gerar uma identidade pessoal, é independente em relação à identificação com organizações e o tipo de conteúdo das postagens é de autoria predominantemente própria. Por sua vez, a identidade equidistante visa desenvolver um diálogo construtivo, é imparcial em relação à identificação com organizações e o conteúdo dos posts é majoritariamente de autoria própria, mas também é influenciado pela empresa e conteúdos publicados por concorrentes. Por fim, a identidade aliada tem como objetivo construir uma audiência leal à empresa para a qual trabalha, a identificação com a organização é explícita e o tipo de conteúdo postado é de autoria própria ou prescrito pela empresa.
Um tópico importante da teoria ator-rede aplicada ao problema da pesquisa refere-se ao papel da mídia na esfera social, onde jornalistas ocupam uma posição privilegiada simplesmente porque fazem parte de uma empresa de comunicação. Quando nos atentamos à esfera social no ambiente digital, constatamos que nas redes sociais jornalistas são percebidos e considerados representantes das companhias para as quais trabalham. A principal consequência disso é que as fronteiras entre vida pessoal e vida profissional se tornam difusas. Nesse cenário, torna-se inevitável para os jornalistas misturar pessoalidade e profissionalismo na construção de uma identidade digital.
As contribuições deste estudo são apresentadas em quatro níveis. A primeira delas é a confirmação de que as redes sociais são uma rede que influencia a identidade de jornalistas, não apenas em relação à conduta offline, mas também à construção do “eu” digital. A segunda contribuição é a condução a uma melhor compreensão sobre como o “eu” digital dos jornalistas é construído nas redes sociais, considerando perspectivas que são prévias ao conflito de interesses no jornalismo e que formam uma das três identidades conceituadas pelos autores: (1) apartidária, (2) equidistante e (3) aliada.
A terceira contribuição defende que os conflitos de interesse ainda existem na relação entre jornalista e empresa jornalística, mas agora são complexificados pelas redes sociais, que redefinem as relações de poder tradicionalmente estabelecidas entre jornalista e empresa jornalística. Neste ponto, é importante destacar agora a participação de mais um agente no conflito de interesses, as audiências das mídias sociais. Em relevo, sobre a participação das audiências nesses conflitos, é necessário mencionar como os jornalistas são atingidos pelo custo inerente das redes sociais atrelado à “cultura do cancelamento”.
Por fim, a quarta contribuição teórica é a identificação da falha das organizações midiáticas em providenciar aos jornalistas um guia oficial com o intuito de orientar suas condutas nas redes sociais. Mesmo assim, cabe a ressalva de que embora as orientações possam garantir aos jornalistas uma margem de liberdade maior na construção do seu “eu” digital, isso não previne o surgimento de conflitos de interesse.
Diante da análise proposta pelos autores, compreendemos que o comportamento de jornalistas nas redes sociais está sujeito a um controle corporativo latente, que produz incertezas tanto para jornalistas como para empresas de comunicação. Este é um dos principais desafios da construção de identidades digitais.
Para pesquisas futuras, o gerenciamento de conflitos de interesse em redes sociais constitui um tema de pesquisa frutífero. Estudos a respeito das mudanças nas lógicas do jornalismo precisam ser aprofundados e as variáveis a serem investigadas são diversas. De acordo com Cañedo, Demeter e Goyanes é cientificamente interessante examinar as interações diretas com a audiência, concorrentes e anunciantes no ambiente digital.
Referência principal:
CAÑEDO, Azahara; DEMETER, Márton; GOYANES, Manuel. The nonpartisan, the equidistant and the allied: How journalists negotiate their digital selves on social media. Journalism, 2023.
Referências complementares:
CALLON, Michel; LATOUR, Bruno. Don’t throw the baby out with the bath school! A reply to Collins and Yearley. Science as practice and culture, v. 343, n. 368, 1992.
LATOUR, Bruno. Science in action: How to follow scientists and engineers through society. Harvard university press, 1987.
LATOUR, Bruno. We have never been modern. Harvard University Press, 2012.
LATOUR, Bruno. Reassembling the social: An Introduction to Actor-Network-Theory. Oxford: Oxford University Press, 2005.
LAW, John. Actor network theory and material semiotics. The new Blackwell companion to social theory, p. 141-158, 2008.
*Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduada em Ciências Sociais pela mesma instituição. Integrante do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Política e Tecnologia (PONTE).
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